Vitório, o garoto engenheiro

 Morei, nos anos 1960, dos sete aos catorze anos de idade, na Rua Xavier Curado, bem próximo ao Museu Histórico da Universi-dade de São Paulo (Museu do Ipiranga). Quase na esquina de casa, na Costa Aguiar, morava o Vitório. Muitos garotos da minha turma do Ipiranga ainda estão em minhas lembranças. Mas o Vitório é um dos que mais marcaram minha pré-adolescência.

Ele era uns dois ou três anos mais velhos do que os integrantes da turma daquele pedaço. O que o diferenciava era a habilidade que tinha em confeccionar ou aprimorar os próprios brinquedos. Era um engenheiro. Ele comprava o pião de madeira numa papelaria e customizava a seu jeito. Ninguém tinha um brinquedo igual. Um dia, ele apareceu na rua com um pião feito da cabeça de um pau de vassoura. E rodava, sim.

Suas pipas não eram comuns. Enquanto a maioria de nós as comprava prontas, Vitório as confeccionava. Conseguia construir pipas de todos os modelos possíveis e inimagináveis. Do “garanhão” (quadrado sem rabiola e sem enfeites) a modelos sofisticados, com formatos até em 3 D, como os do avião 14 Bis, da águia e do peixe. Os maiores, empinados com cordonê, uma espécie de barbante mais grosso do que a linha 24 (ou 50, não me lembro), eram chamados por ele de “lata de óleo”, “barraca” e outros nomes. Aliás, à pipa de hoje, que corta a linha e deixa a molecada alucinada, chamávamos “barrilete”.

Naquela época, em São Paulo não se usava cortante na linha. Isso era costume dos cariocas. Aqui predominavam as arraias coloridas, que não davam piruetas em busca de outras pipas. Para nos deixar ainda mais invejosos com relação às habilidades levava para empinar seus quadrados uma carretilha – feita por ele mesmo, claro. “Dava linha” e “recolhia” com a maior facilidade. Nós, sem jeito nenhum para construir carretilha ou pedíamos para ele fazer uma para nós ou continuávamos a enrolar a linha em latas de óleo, de molho de tomate, de leite em pó, etc.

Tudo que víamos nas mãos de Vitório, queríamos para nós. E ele fazia sem exploração. Não me lembro quanto pagávamos para isso. Mas eu mesmo tive vários brinquedos feitos ou customizados por ele. Um ioiô de madeira, por exemplo, que ia até perto do chão e continuava girando até que um pequeno tranco o trazia de volta às mãos está na lista dos brinquedos de que mais gostava. Quanto a fazer malabarismos com o ioiô, isso nunca aprendi. Certa vez, cheguei a entrar em um concurso de quadrados na escola em que estudava. Porém, como o modelo que levei para empinar foi feito pelo nosso amigo, não consegui tirar do chão. Era, se não me engano, uma “barraca”, um quadrado enorme, quase do meu tamanho, com armação de varetas japonesas grossas.

Pensei em escrever sobre o Vitório depois que assisti ao filme A Invenção de Hugo Cabret. Hugo é um garoto de doze anos que vive em uma estação de trem em Paris no começo do século 20. Seu pai, um relojoeiro que trabalhava em um museu, morre momentos depois de mostrar a Hugo a sua última descoberta: um androide, sentado numa escrivaninha, com uma caneta na mão, aguardando para escrever uma importante mensagem. O problema é que o menino não consegue ligar o robô, nem resolver o mistério. Na busca de solucionar o problema e colocar o androide em movimento, o garoto se envolve em muitas enrascadas. Numa delas, há um diálogo em que uma senhora diz algo mais ou menos assim: “Estamos nesse mundo para consertar as coisas, juntar as peças…”.

Acho que era isso o que Vitório fazia com muitos de nós. Além de juntar ou consertar as peças e colocá-las em movimento, ele incluía nelas algo mais. E era isso que me fascinava. Desde que mudei da Xavier Curado, nunca mais vi o Vitório. Seria ele hoje um engenheiro, um administrador ou um médico? Espero que, qualquer que seja a profissão que tenha escolhido, que ele continue juntando peças, consertando coisas e ajudando a vida a ser melhor.

Amorim Leite

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