Dangerosíssima. Fazia a Admissão, curso que já não existe mais. Na época (anos 1970), ele era um preparatório oficial para se entrar no Ginásio (atual 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental) em escola estadual. Antigamente, podia-se terminar o Primário (1ª à 4ª série) e pular direto para o curso ginasial prestando um exame, já que as escolas estaduais eram muito concorridas e ofereciam ensino melhor que o das particulares.
Quem não conseguia ir da 4ª série para o 1º ginasial, podia cursar o 5º ano e ainda fazer a Admissão. Não consegui dar esse pulo. E só foi eu terminar a tal Admissão e a lei mudou. Surgiu a famosa 5.692. Agora, é só ter vaga no Estado, matricular-se e… pronto. O problema é que, com a Lei 5.692, também mudou a qualidade de ensino em escola pública. Mas isso é texto para outro dia.
Estudava no Colégio Estadual Professor Gualter da Silva, o maior rival do Instituto Estadual de Educação Alexandre do Gusmão. O Gualter está no Moinho Velho, bairro vizinho ao Ipiranga, enquanto o Alexandre está mais no Centro do Ipiranga. Vermelho era a cor do blusão do Gualter e azul a do Alexandre. Se essas cores se cruzassem, havia confusão certa — algo parecido com o que acontece com algumas torcidas de futebol hoje. Não se podia passar em frente a essas escolas trajando uniforme da rival. Nos Jogos da Primavera, com a participação de colégios de São Paula inteira, Gualter e Alexandre de Gusmão sempre se sobressaíam. Eram muito legais aqueles dias. Tinha-se prazer em vestir a camisa, ou melhor, o blusão da escola.
Foi numa das aulas de Língua Portuguesa ou Literatura — não me lembro ao certo — que me deparei com o termo “dangerosíssima”. Meu professor, Gilberto, um jovem de uns trinta anos, cabelos lisos claros, sempre bem vestido e de óculos que o deixavam com cara de “inteligente”, sentava-se à mesa e nos conduzia à leitura de um livro. Cazuza, de Viriato Correa (1884—1967) foi um dos que lemos. “Dangerosíssima”, porém, estava em um texto de Paulo Mendes Campos (1922—1991). Pensava assim até me sentar para escrever este post. Porém, ao pesquisar para escrevê-la aqui com mais detalhes, só a encontrei em um poema de Carlos Drummond de Andrade (1902—2002): O homem; as viagens.
Recentemente, fui alvo de arrastão em uma das avenidas dangerosíssimas da região do Ipiranga, a das Juntas Provisórias, que margeia a região do Heliópolis, onde, nos dias da Admissão só havia campos de futebol de várzea. Nessa mesma época, a Favela do Vergueiro, uma verdadeira cidade, acabava de ser extinta e prenunciava ali o bairro do Klabin. Heliópolis nasceu bem mais tarde, como “alojamento provisório”, abrigando famílias da Favela de Vila Prudente, numa tentativa de se acabar com esta, que, aliás, se formou com gente da Vergueiro. Heliópolis se tornou uma das maiores favelas de São Paulo e Vila Prudente nunca se extinguiu. A diferença é que, agora, no lugar dos barracos há casas de alvenaria em ambas as comunidades.
A Copa vem aí e o governo, preocupado com a (falta de) segurança nesses dias, está se preparando para que tudo transcorra na mais perfeita ordem. A nós simples mortais cabe apenas torcer. Torcer para que nossa família tenha o direito de ir e vir sã e salva. Torcer para que a educação com qualidade esteja ao alcance de todos. Torcer para que a saúde seja olhada com mais cuidado e menos brasileiros morram por falta de atendimento decente. Torcer para que possamos viver dias o menos DANGEROSÍSSIMOS possível. Do jeito que está não há brasileiro que aguente!
Ouça aqui o poema O homem; as viagens. Se preferir, leia-o abaixo.
Em tempo: dangerosíssimo não está nos dicionários da língua portuguesa. Drummond, numa licença poética, além de acrescentar à palavra inglesa danger (perigo, em português) o sufixo de superlativo “íssima”, adaptou o adjetivo de maneira que ele soasse lembrando “perigosíssima”.
O homem; as viagens
O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.
Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto — é isto?
idem
idem
idem.
O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima DANGEROSÍSSIMA VIAGEM
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de conviver.