Nessas férias de final e início de ano, aproveitei para tentar colocar a leitura em dia. Por isso, coloquei na mala o livro que ganhei de meus colaboradores em fevereiro de 2010: Jornal Nacional – Modo de fazer, escrito por William Bonner e publicado em 2009 pela Editora Globo.
Se soubesse que seu conteúdo era tão bom e a linguagem tão acessível, teria lido de imediato quando o ganhei de presente de aniversário. O cara escreve muito bem. Consegue ser técnico, didático e jornalístico sem cansar o leitor e ainda dá boas pitadas de humor ao texto. Muito bom!
Há um episódio narrado por Bonner que quero compartilhar aqui. Na página 203, no capítulo “JN nas Eleições”, ele conta como o telejornal trabalhou a cobertura da eleição presidencial de 2002. E cita ali como foi o histórico momento em que entrevistou o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva em 28 de outubro de 2002. Transcrevo parte do capítulo a seguir.
“E já que mencionei, aqui, a entrevista daquela segunda-feira histórica, é chegada a hora de revelar: era para o início dela ter sido diferente.
Ao planejar, naquela tarde, as perguntas que eu formularia ao presidente eleito, minha intenção era abrir a conversa com emoção do momento. Não seria razoável ignorar, no encontro com Lula eleito, a carga emocional óbvia que a vitória nas urnas continha. Depois, naturalmente, encaminharíamos a entrevista para questões objetivas, ligadas ao programa de governo, as primeiras providências.
Agora eu peço que tente se colocar em meu lugar e imagine: qual seria a primeira pergunta a se fazer ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia seguinte à conquista eleitoral?
Se a eleição representava uma emoção imensa para o ex-torneiro mecânico, a qual outra ela poderia ser comparável? O nascimento de um filho? A união com dona Marisa? E fui descartando essas comparações que, a meu ver, poderiam soar piegas par alguns, ou levar apelativamente o presidente às lágrimas diante de milhões de pessoas. A solução, então, surgiu quase automaticamente. Dada a paixão pública de Lula pelo Corinthians, decidi começar nossa conversa de maneira bem humorada, propondo a seguinte questão:
— Presidente, qual foi a maior emoção para o senhor? A eleição de ontem ou o gol do Basílio?
Ali Kamel [diretor da Central Globo de Jornalismo] entende de futebol certamente mais do que eu sei de islamismo. Mas, ao ouvir minha ideia, ele me fez duas perguntas. Primeiro, quis saber quem era Basílio. Expliquei que foi um jogador do Corinthians que marcou o gol que deu ao clube o título paulista de 1977, na partida final contra a Ponte Preta de Campinas, depois de 23 anos de jejum corintiano. Então, Ali perguntou se, para um corintiano, aquela pergunta faria sentido. Respondi que sim, que qualquer torcedor do Corinthians que tivesse mais de 35 anos de idade teria o coração atingido em cheio por aquela pergunta. E Ali pareceu convencido de que seria um bom começo. Ligou para Carlos Henrique Schoroder [diretor-geral de Jornalismo e Esporte (DGJE)], que estava no Rio — e recebeu o OK. Seria aquela a primeira pergunta.
Porém (aaaaaahhhhhh, porém), passados alguns minutos, eis que o então diretor de Jornalismo da Globo São Paulo, Luiz Cláudio Latgé, teve a curiosidade de nos perguntar se já havíamos decidido como iniciar a entrevista. Lembro que contei a ele, esperando um cumprimento efusivo: “Genial!”, “Sensacional!”, algo assim. E ênfase foi o que não faltou na reação de Latgé:
— Vocês enlouqueceram? A primeira pergunta que o Jornal Nacional vai fazer ao presidente eleito é sobre um gol do Corinthians?
O botafoguense Latgé tinha um tom de voz tão indignado que, imediatamente, eu me vi ridicularizado por todos os colegas jornalistas, fulminado por Lula, execrado pelos torcedores do próprio Corinthians e de todos os demais clubes brasileiros. Olhei, já envergonhado, para Ali. Ele também estava claramente impressionado com a reação do diretor de Jornalismo da Globo SP. E reuniu toda a delicadeza que poderia ter para me dizer, quase pedindo desculpas:
— William, talvez, então, não seja apropriado. Talvez seja melhor, mesmo, pensar num caminho alternativo para o início…
Ali Kamel estava certo, porque Latgé estava certo. Era uma loucura. E, santo Deus! Tínhamos cooptado até o nosso chefe, Carlos Schroder, para aquela sandice.
A entrevista foi ao ar. A primeira pergunta foi algo tão genérico sobre a emoção do momento que nem me darei ao trabalho de buscar nos arquivos para reproduzir aqui. Mas, de toda forma, o presidente se emocionou muito, em diversos momentos em que não aparecia na tela da TV. Era quando buscava o olhar cúmplice de dona Marisa. Ou, para descontrair, tentava fazer algum comentário brincalhão com o amigo e assessor, o jornalista Ricardo Kotscho, que estava ao lado da futura primeira-dama, em cadeiras postas bem perto da bancada de apresentação montada especialmente para aquela edição excepcional do JN, na redação da Globo São Paulo.
Quando terminou, Ali Kamel e eu encaminhávamos o presidente eleito e sua mulher para uma sala onde ele concederia entrevista à jornalista Lally Weymouth — editora e herdeira do jornal Washington Post. Ainda no corredor, Lula comentou que, de vez em quando, precisava se beliscar para comprovar que aquilo era real. E manifestou surpresa com o fato de ter sido procurado por tantos chefes de Estado e de governo, ao longo do dia, para receber cumprimentos pela vitória nas urnas: “Esse pessoal todo ligando…”
Éramos cinco, no caminho: Lula, dona Marisa, Kotscho, Ali Kamel e eu. E, quando tomamos o elevador e a porta se fechou, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva disse o seguinte, sem que ninguém tivesse perguntado:
— Olha… fora o gol do Basílio, eu acho que eu não tive uma emoção igual a essa na vida.
Ponto.
O presidente havia ido buscar, na memória emocional, o sentimento expresso naquelas palavras. E eu, ato contínuo, saquei as minhas — das memórias que tinha das arquibancadas do Morumbi:
— Puta que pariu!
— William! — exclamou um Ali Kamel absolutamente desconcertado com minha interjeição. E eu, virando-se para a esposa do presidente eleito:
— No bom sentido, dona Marisa! Desculpe, por favor! Mas é que a primeira pergunta que eu faria era exatamente sobre qual dessas duas emoções havia sido maior!
E então, com um sorriso, disse Sua Excelência, o presidente eleito, a seus quatro acompanhantes, quando saímos do elevador: — Olha… se você tivesse perguntado… eu acho que diria que a eleição… foi uma emoção maior, sabe? Eu acho que foi, sim…”
Amorim Leite
Tenho esse livro. Ganhei há dois anos.
Preciso ler! rsrs